Teatro | Aderbal Freire-Filho dirige nova montagem de ‘Nossa vida em família’

RIO — Na primeira vez em que pisou no Rio, ele tinha 19 anos. Ator amador desde os 13, o cearense Aderbal Freire-Filho já havia trabalhado como técnico em prospecção de petróleo e vendedor de móveis de aço, mas o teatro não o largava.
— Fiquei por aí, e assisti ao que pude... — diz o hoje diretor, que, em 2014, completa 60 anos de palco.
Tentou se aproximar, conhecer a cena, mas nada feito. A timidez reforçou o anonimato e, dois anos depois, aos 21, sem trabalho, palco ou dinheiro, ele voltou para Fortaleza. 
Oito anos mais tarde, já advogado, com mulher, filho e algum dinheiro, jogou tudo para o alto e rumou novamente para cá. Era a última chance.
Aos 29, porém, estava quase na mesma: ator e já diretor, mas ainda absolutamente desconhecido. Era 1970, ano de Copa do Mundo, só que, em vez de Pelé, Oduvaldo Vianna Filho (1936-1974) era seu ídolo. E naquele ano o dramaturgo desenvolvia novas técnicas de jogo.
As narrativas e os personagens populares e politicamente engajados de Vianninha saíam de campo para dar lugar a protagonistas de classe média. Surgiam, então, o jornalista de "A longa noite de cristal", dirigida por Celso Nunes, o publicitário de "Corpo a corpo", encenada por Antunes Filho, e o aposentado idoso Souza, protagonista de "Em família", também escrita naquele ano e levada à cena por Sérgio Britto (em 1971, o texto virou roteiro de um filme dirigido por Paulo Porto e, em 1972, ganhou do autor um novo título, "Nossa vida em família", e uma nova montagem, dirigida por Antunes Filho).
Pois agora, mais de 40 anos depois, é a vez de Aderbal assinar sua versão para "Em família". Rebatizada de "Vianninha conta o último combate do homem comum", a peça entrou em cartaz nesta sexta-feira no Sesc Ginástico, com sessões às 19h, de quarta a domingo, até 27 de julho.
— Essa peça é como o ápice da investigação do Vianninha sobre o "homem comum", o trabalhador brasileiro, o cara lutador que faz de tudo para se sustentar, manter a família — diz o diretor. — É um personagem que já aparece em outras peças, mas que se torna protagonista nesse texto.
Nele, o casal de idosos Souza (Cândido Damm) e Lu (Vera Novello) reúne os filhos num almoço para informá-los de que terão de deixar a casa onde vivem. Os proprietários decidiram reajustar o aluguel para um valor incompatível com a aposentadoria de Souza. A "solução" é separar o casal: Souza vai morar com a filha em Brasília, e Lu fica no Rio, num asilo.
— Decidi por esse título porque, na peça, o Vianninha faz um recorte da etapa final da vida desse homem, como se fosse a sua última batalha manter ou não o aluguel — conta o diretor.
A identificação com o tipo burilado por Vianninha, no entanto, vem do tempo em que Aderbal chegou aqui, garoto:
— Eu me sentia um pouco como esse cara, porque o que marca esse homem comum é a questão do anonimato. E aqui, ninguém me conhecia.
Entre 1970 e 1974, Aderbal viveu "quatro anos de batalhas", como diz. Dirigiu peças marginais, fez trabalhos como ator e, numa dessas investidas, foi visto, no palco, por seu ídolo.
— Eu era fã dele, como autor e ator. Então um dia ele assistiu a uma peça que fiz como ator, "O segredo do velho mudo" (de Nelson Xavier), em 1973, e, depois, fomos apresentados por um amigo e ele me reconheceu.
Mas o contato não avançou. Mais tarde, naquele mesmo ano, Vianninha adoeceu. Seu trabalho na TV Globo, onde escrevia o seriado "A grande família", foi interrompido. Viagens aos Estados Unidos, para tratar do câncer diagnosticado, o tiraram de circulação, e Aderbal teve de torcer à distância.
— No meio daquele turbilhão, não foi possível me aproximar e estabelecer um maior contato.
Vianninha morreu um ano depois. E, em 1975, Aderbal estreou sua primeira encenação para um texto do autor, "Corpo a corpo".
— Conheci o Vianninha um ano antes de ele morrer, e a minha relação artística com ele começa justo um ano depois da morte — lembra.
Após "Corpo a corpo" veio "Moço em estado de sítio", em 1980, e depois, a então inédita "A mão na luva", em 1984. Foi a última vez em que Aderbal dirigiu um texto do autor. Até agora, ano que marca também quatro décadas da morte de Vianninha.
— Agora volto a ele, em um texto fundamental, que revela os avanços dramatúrgicos que ele propunha. Em relação ao conteúdo, ele relativiza a figura do herói — diz. — Quanto à forma, ele rompe com os limites físicos do palco e do tempo da narrativa. Ela muda de lugar o tempo todo, avança e volta no tempo.
O sonho de montar "Em família" tornou-se ainda mais urgente em 2011. À época, Aderbal estava à frente do projeto "Dramaturgia em debate", que reuniu leituras dramatizadas para textos de oito autores da Sociedade Brasileira de Autores (Sbat), entre eles Vianninha. 
Diretor da entidade desde 2005, Aderbal encena agora a peça como marco inicial de um projeto que visa fazer voltar à cena parte do acervo da Sbat, que teve como um de seus fundadores o pai de Vianninha, o também autor Oduvaldo Vianna.
— A ligação do Vianninha com a Sbat vem de sangue, e ele esteve bastante envolvido.
Afogada em dívidas que somam cerca de R$ 5 milhões, a Sbat funciona hoje com apenas cinco funcionários e tem sua folha de pagamento coberta, desde 2013, por doações voluntárias. O cachê de Aderbal, assim como o das produtoras e atrizes Vera Novello e Ana Velloso, será doado para a instituição. 
Prestes a completar dez anos à frente da entidade, Aderbal ainda acredita na sua importância e aposta que ela voltará a caminhar pelas próprias pernas. Para isso, conta com o seu maior patrimônio, a pena criativa de seus autores.
— A Sbat não se resume à arrecadação de direitos. É isso também, e estamos ampliando a nossa atuação, com a arrecadação de direitos de roteiristas de cinema e TV — diz. — Mas a Sbat é, ainda, um bem cultural, por conta de seu acervo, e um centro de investigação dramatúrgica. 

E é por isso que a gente torna o Vianninha o ponto de partida, porque ele foi um desses grandes que alargaram a poética da cena. Queremos reerguer a Sbat e seus autores, mas precisamos de apoio, sobretudo do estado e do município. É preciso que compreendam o quanto a Sbat é fundamental.

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